Eu ainda estou contigo.
- J. V. A.
- 4 de dez.
- 5 min de leitura
Ao pé de uma colina verdejante repousava um menino. Deitado sobre a grama, dormia um sono tranquilo enquanto uma brisa suave remexia seus cabelos brancos como a neve. Não contente em tocar apenas o menino, o vento soprava e espalhava-se ao redor fazendo a relva alta e algumas poucas flores silvestres farfalhar em um sublime som do campo. Ao leste, corria um rio acelerado, acompanhado por frondosas e frutíferas árvores, que se uniam à harmonia sensorial com seus aromas de úmido frescor. O menino, sobre o leito campestre, não era uma parte alheia desse cenário de agradável bucolismo e, embora adormecido, saboreava em seu interior essa doce consonância. Como ele tinha chegado lá? Nem ele sabe e penso que nem se importava muito em saber. Seu sono era profundo e proveitoso e o ambiente era confortável e aconchegante para ele. Era como se tudo ao redor culminasse em seu tão desejado descanso. Contudo, é sempre necessário acordar.
O orvalho da manhã já se elevava em sereno. O céu, antes escuro e profundo, agora, lentamente, enrubescia envergonhado enquanto os primeiros raios de sol pairavam sobre a colina. Não demorou muito e as luzes matinais alcançaram o menino, tocando seus olhos num pedido para que acordasse. Pois bem, ele aceitou. Vagarosamente, começou a levantar-se, mas ainda de olhos fechados, apegando-se a seus últimos momentos de repouso. Ele bocejou, alongou-se e sacudiu a cabeça, somente para então abrir os olhos, milímetro a milímetro. Sem muito tempo de contemplação, sua vista nubla-se das remelas e lágrimas. Ele esfrega os olhos e a primeira coisa que enxerga é o sol. Grande, brilhante, imponente e de cor vermelha fogo, mas estranhamente próximo, como se pudesse tocá-lo. Por algum motivo, essa sensação lhe trazia um forte sentimento de paz e alegria. O calor e o esplendor eram tão fortes que, mesmo plenamente acordado, ele ainda não conseguia abrir os olhos com facilidade - o que lhe era motivo de risada.
Quando finalmente foi capaz de olhar adiante, notou que a paisagem começou a escurecer. Não era a tarde chegando, eram nuvens, negras e densas, que se reuniam anormalmente diante do sol. Como ávidos vermes tentando digerir um corpo em decomposição, as nuvens juntavam-se tentando obstruir a sua luz. De repente, a colina florida secou até tornar-se um pico rochoso. A relva e as flores ao redor murcharam e desapareceram e deixaram apenas pedras e areia. Da sequidão, fendas abriram-se na terra formando de pequenas rachaduras no solo até repentinas ravinas. Agora, diante de Edgar, não estava mais o astro imponente e esplendoroso, mas sim uma cadeia de montanhas secas e vazias sob um céu eclipsado. Os lábios e os joelhos de Edgar começaram a tremer. Lágrimas de angústia tomaram seus olhos que não sabiam nem o que fazer, nem por que se sentiam assim. Não havia força em seus braços e seus pés. Ele estava paralisado, perplexo, apavorado, deprimido. Não conseguia compreender como um cenário tão vivo e confortável se tornou um campo desolado como se pela guerra e pelo desastre. Mil pensamentos vinham sobre a sua cabeça e cada um deles retorcia ainda mais o seu coração. Não havia nada que ele pudesse fazer? Não que houvesse algo para ser feito, mas o pesar e a culpa - que ele não encontrava razão clara para ter, mas sentia de igual forma - em seu coração eram tamanhos que ele ansiava por fazer algo. Algo para restaurar aquele local. Algo para salvar a paisagem, a vida, a beleza. Aquilo que ele mais amava naquele lugar. Então seus olhos perdidos encontraram algum descanso. Ao longe, no pico mais alto da cordilheira circundante, avistou uma montanha em que ainda havia vegetação. Árvores estiradas e amontoadas como pelos sobre o queixo de um homem, flores coloridas que pintavam pontualmente a paisagem como marcações feitas à caneta e, se não bastasse essa maravilhosa vista trazendo um pouco de conforto ao seu coração atribulado, o menino era, inclusive, capaz de ouvir um eco como o de gorjear de pássaros alegres. De fato, ainda existia vida e ele alegrou-se com ela.
No topo da tal montanha verde, residia uma torre, construída em rubros tijolos. Ela não era imponente como uma fortaleza duramente guardada, nem tinha um aspecto nobre ou luxuoso de um castelo. A sensação que ela passava era de um lugar modesto, mas confortável, seguro de todas as confusões do restante da paisagem. O menino, ao avistá-la, sentiu-se ainda mais consolado. Era ali o seu refúgio, onde poderia se resguardar de toda a angústia e sequidão. Ele contemplou deleitosamente para a torre e desejou alcançá-la. Num piscar de olhos, ele estava à frente dela, face a face com sua porta de entrada. Satisfação encheu completamente o seu coração. Logo, sorridente, ele esforçou-se para dar o primeiro passo, mas suas pernas estavam presas. Em seguida, para o pânico de sua alma, a torre incendiou-se. Desesperado, ele tentou se mexer. Sacudiu-se, contorceu-se, tentou até mesmo se puxar para frente, mas nada adiantava. Quer para fugir, quer para tentar apagar o fogo, ele não conseguia sair do lugar. Ainda inconformado com sua inaptidão, ouviu estalos e trincados. Era a madeira queimando e os blocos cerâmicos quebrando. A satisfação de outrora converteu-se em profundo lamento, trazendo-lhe à tona um pranto mudo. Em pouco tempo, a estrutura começou a ruir. No meio do colapso, Edgar permanecia imóvel, paralisado como estátua. Seu semblante estava arrasado, coberto de lágrimas que escorriam pelo queixo e até o pescoço. Divagando, ele pensou ter ouvido um grito de dentro da torre. Culpa e remorso encheram-lhe a alma. Ele fechou os olhos tentando apagar a visão diante de si. Nesse momento, o fogo ficou mais intenso e o calor que lhe chegava era insuportável. Em silêncio, ele só pedia para que aquilo acabasse de uma vez - e então eis que ouviu os últimos blocos caírem. O calor dissipou-se e ele sentiu as pernas amolecerem até ele mesmo despencar. Uma queda longa como se a própria montanha tivesse desaparecido debaixo de seus pés. Nesse momento, ele ouviu um eco, como de uma voz, dizendo: “Não tenha medo, eu ainda estou contigo."
Quando o menino voltou a sentir o chão, não estava mais nem na colina nem na montanha. Ele abriu os olhos em um sobressalto, inspirando como quem emerge de uma vastidão de águas. Ele se levantou e se ergueu violentamente na tentativa de reconhecer onde estava, mas aquele movimento abrupto apenas conseguiu roubar-lhe mais um instante. Ele tonteou, sua visão escureceu e sentiu seu corpo amolecer. "Baixou a pressão", ele murmurou para si mesmo enquanto deixava recair o olhar sobre o chão. Quando sua vista retornou, a primeira coisa que viu foi o piso de concreto. Fungando, sentiu o ar pesado da cidade misturado à umidade que precede uma tempestade. Olhando para os lados, não viu sombra de fortaleza, montanha ou céu obscuro. Apenas grades de um azul esverdeado e bancos da mesma cor, senão um pouco mais gastos. Ele tinha caído no sono, no terraço de seu prédio. Agora era tarde, quase noite. O céu, entre gradientes de um azul escuro salpicado de suaves tons de cinza e de um laranja avermelhado ainda radiante, mas já esmaecendo, anunciava o prelúdio da noite. O sol ainda estava lá, como que para dar um último adeus antes da mudança de turno com a lua — sua colega —, que já se aproximava pelo outro lado. Não havia fogo, não havia sequidão ou desolação, mas um remanescente da angústia ainda estava lá. Mais fortes do que ele, porém, estavam aquelas palavras sem face, como que sopradas pela brisa suave: "Não tenha medo, eu ainda estou contigo."
Ele desceu, entrou em casa e abriu um livro.
A angústia passou; a voz, mais uma vez, falou.





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